DNA dos parasitas das fezes dos vikings pode nos ajudar a evitar doençasSandália de 1.700 anos é encontrada em montanha remota da Noruega
Cientistas como a arqueóloga Marienne Moen acreditam que as evidências arqueológicas dos escandinavos foram utilizadas para extrair histórias muito simplificadas daquela sociedade, pontuando, por exemplo, que o “homem viking” e a “mulher viking” foram construídos, na academia, como papéis rígidos e universais. Há de se entender a sociedade nórdica de formas mais variadas.
Quem eram os vikings?
Para começar, até mesmo o termo viking é pensado de maneira diferente. Atualmente, sabemos que designa apenas os escandinavos medievais, de 750 a 1100 d.C., que saíam em incursões, com ataques e saques a outros países, sendo o um indicador de profissão, e não de origem, especificamente. Estudos mostram que, inclusive, nem todos eram de etnia caucasiana. Os estereótipos, no entanto, são difíceis de se dissociar: o uso de “viking” como povo já está fora de qualquer controle na cultura pop. Começando nos séculos XVIII e XIX, o estudo dos vikings partiu, é claro, dos acadêmicos da época, cuja predominância era masculina. Jacob Bell, historiador e medievalista, aponta que eram homens brancos querendo saber sobre homens brancos do passado: com isso, já partiam do pressuposto de que as mulheres da época tinham um papel mais secundário, de suporte, assim como as mulheres de seu próprio tempo. Mesmo hoje, projetamos nossas próprias crenças e estrutura social ao estudar o passado, por mais que sejam tempos mais inclusivos e preocupados com os diferentes papéis de gênero possíveis. Até hoje, muitos pesquisadores dividem as tumbas escandinavas em masculinas e femininas apenas a partir dos itens presentes: caso encontrem espadas e armas, o túmulo seria de um homem, um guerreiro. Caso vejam broches, a tumba seria de uma mulher. Ambos os “tipos” de tumba, no entanto, contêm objetos em comum, como equipamentos de cozinha, ferramentas diversas, como facas, e cavalos sacrificados: além disso, de 218 túmulos analisados por Moen, 1/4 não incluía broches e nem espadas. Para a abordagem acadêmica tradicional, não seria possível definir o gênero da pessoa ali enterrada. Um caso emblemático é o da guerreira de Birka. Na cidade de mesmo nome, na Suécia, um túmulo viking foi encontrado, em 1878, contendo equipamentos de um guerreiro profissional. Os estudiosos logo concluíram se tratar da tumba de um homem, mas, nos anos 1970, notaram-se características femininas nos ossos, e, em 2017, análises de DNA confirmaram: o túmulo era de uma mulher. Isso não crava, no entanto, que a mulher medieval ali presente era uma guerreira. Em alguns casos, bebês e crianças pequenas eram enterrados com armas, e estas também poderiam ser oferendas de ou para um outro guerreiro próximo à falecida. Especialistas de todas as áreas e gêneros, como Judith Jesch, ainda não creem que havia guerreiras vikings: ao menos, não reconhecidas ou significativas, como o túmulo de Birka parece indicar. Outra evidência arqueológica interessante é o famoso túmulo de Oseberg, o mais prolífico em termos de itens e informações sobre a vida dos vikings. Nele, há os corpos de duas mulheres provavelmente muito poderosas em sua sociedade: com elas, estavam tesouros como uma carruagem ornada com relevos de gatos, uma indicação mitológica — a deusa Freya, esposa de Odin, andava com uma carruagem puxada por dois felinos.
Mitologia e sociedade nórdica
O que conhecemos da cultura e vida dos escandinavos medievais vem de túmulos, pedras rúnicas e escritos de outros povos que tiveram contato com eles, além dos importantíssimos escritos mitológicos das sagas e Eddas poéticas. Em alguns deles, há a presença de figuras femininas fortes, como Gudrid Thorbjarnardóttir, uma viajante que teria levado seu povo à América do Norte, e Aud Mente-Profunda, líder de colonos vikings. Só isso já indica que as mulheres nórdicas faziam mais do que ficar nas vilas, cuidando da família, mas que se aventuravam em viagens assim como os homens. Apesar de não haver relatos delas lutando em batalhas, testemunhas da época as viam junto a incursores, os incitando a lutar. Além disso, pesquisas mostram um papel feminino muito importante no gerenciamento de assentamentos vikings, essencial para o sucesso das novas vilas. Mais importante, há o mito escandinavo da “donzela-rei”, presente até mesmo no recente filme de Robert Eggers, O Homem do Norte, onde se fala de uma profecia onde uma mulher herdaria a coroa. Histórias desse gênero geralmente indicam uma protagonista de origem nobre que não quer se casar, mas quer ser líder. Um dos contos fala de uma herdeira do trono que muda de nome e gênero ao ser empossada (até mesmo a saga passa a tratar o personagem como “ele” a partir desse momento), lutando e matando todos os pretendentes, menos um — que leva a melhor em combate e acaba se casando com o governante. Muitas sagas seguem esse padrão, e os especialistas creem que possa ser um reflexo de uma ansiedade social do que aconteceria caso um rei tivesse apenas herdeiras ao trono, e a erosão que isso causaria nos papéis de gênero tradicionais. A mudança de nome e gênero, no entanto, mostra que havia alguma flexibilidade nesse sentido. Outras figuras mitológicas interessantes são as valquírias, que controlavam a vida e a morte de guerreiros e são descritas como criaturas livres das amarras da sociedade humana.
Gênero, sexo e papéis sociais
Embora alguns estudiosos, como Moen, acreditam que o gênero pudesse ser algo mais fluido na sociedade escandinava, com pessoas ousadas e corajosas sendo consideradas mais “masculinas” e poderosas, há poucas evidências disso, já que os mitos mostram distinções muito claras entre homens e mulheres. Essa diferença, no entanto, se diluía de acordo com o status social: viúvas que possuíam terras, por exemplo, tinham praticamente os mesmos direitos do que homens donos de terra. Mulheres nobres eram poderosas, mas ainda tinham de navegar pelas estruturas de poder patriarcais, e seu poder talvez fosse atrelado a essa habilidade de negociar status. É claro que, para as camponesas nórdicas, a situação era bem diferente — não há como tomar essa antiga sociedade como um todo. Por fim, há um caso emblemático: um túmulo viking encontado em 1968, onde foram encontradas diversas armas e um indivíduo vestido com roupas femininas e broches. Acreditava-se ser, como algumas outras, uma tumba feminina diferente. Ao estudar seu DNA, no entanto, uma equipe de cientistas descobriu se tratar de um homem XXY, ou seja, com síndrome de Klinefelter, que confere algumas características diferentes, como seios e quadris avantajados e maior altura. Não sabemos como essa pessoa era tratada em sua sociedade, ainda mais ao pensar que sexo e gênero são diferentes e podem ter sido encarados de forma diversa pelos escandinavos medievais — especialmente por esse indivíduo único. Segundo os cientistas, esses restos podem representar a aceitação de uma não-binariedade nos gêneros por parte dos vikings: apesar de não se encaixar em um modelo binário, a pessoa enterrada ainda teve um enterro digno de alguém muito respeitado em sua sociedade. No fim das contas, todas essas são interpretações feitas por nós, na sociedade atual, projetando nossas ideias enquanto tentamos descobrir, por meio de dicas arqueológicas, como pensavam pessoas de um milênio atrás. O que sabemos é que o sexo biológico não era sempre determinante do caminho traçado por alguém na época, assim como hoje, e não podemos generalizar o papel das mulheres escandinavas medievais, como um dia já o fizemos. Aos poucos, diversificamos nosso entendimento do passado, e com isso, espera-se, vamos derrubando os nossos vieses — um túmulo por vez. Fonte: History Compass, Academia, Museum of Cultural History, Physical Anthropology, European Journal of Archeology, Nature via Inverse